ele pensa e não diz
onde tem muita água
tudo é feliz.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Apenas Fumaça


Eu consigo ver nitidamente o dia em que você me deixa. Ele começa com bom-dia, café e um cigarro. Beijinho e eu te amo. Você sai, eu fico mais um pouco, porque trabalho perto. Faço as palavras cruzadas do jornal, que é meu hobby de velha, como você diz. Ou dizia. Ou diria.
No seu trabalho, alguns fumam, você não. Ainda é muito novo lá, o chefe não aprovaria, seria uma afronta. Mas você morre de vontade. Apalpa os bolsos involuntariamente, só pra sentir o maço pela metade, o isqueiro. Nesse momento, não vê ninguém à sua volta; só existe tu e os teus cigarros. De repente, lembra de mim, com carinho, e sem saber que será a última vez. Fica pensando em como minhas covinhas se fazem nítidas quando trago, em meu sorriso ao cobri-lo de fumaça. Sorri. Nem nota que é observado.
Ao sair, em passos lentos, porém decididos, ela te chama pelo nome. Você se vira e a vê de verdade pela primeira vez. Pergunta se tens isqueiro e ri. É bonita, mais alta que eu, mais branca que eu, os cabelos mais compridos que os meus, pintados em algum tom de ruivo que lhe cai bem e que nunca ficará bom em mim.
Você tira um cigarro do maço e põe na boca, ela te acompanha. Acende primeiro o dela, depois o seu. Ela afirma convictamente que sempre soube que você fumava, era clara a sua expressão quando via os outros. Achava bonito você não fumar lá dentro do trabalho, ela sempre fumava escondida e já fora pega algumas vezes. Você dá um sorrisinho e esse é o sinal de que começa a gostar dela.
A partir desse momento, você não está mais comigo. Não em pensamento. Uma semana depois, nem fisicamente.
Agora é ela quem ocupa o outro lado da cama e saem juntos pro emprego. Ela fuma como ninguém.
Minto,_você pára pra pensar_ela não fuma mais do que eu. E por um breve instante, lembra de como costumava encostar o nariz bem de leve na ponta de meus dedos e sentir o cheiro do cigarro. E de que, ao fazê-lo, cerrava os olhos e virava fumaça.
Mas foi só por um instante, ela chama a sua atenção para algo que acontece do lado de fora do ônibus. Então você tenta lembrar do cheiro das mãos dela. É sempre doce, elas nunca se assemelham a cigarro ou fumaça; ela tem compulsão por um hidratante que tira todo o cheiro 'bom'.
Daí em diante, você repara o quanto ela é artificial. Que os cabelos são alisados, a maquiagem uma obrigação, a comida é sempre salada sem graça, nunca há espaço para um brigadeiro, as unhas são postiças, a risada forçada. Não que isso seja ruim, ela é linda, encantadora em tantos aspectos. Mas te atormenta o pensamento de que um dia, quando você pegar no sono, ela vire para o outro lado e tire os dentes e os coloque num copo com água. A situação piora: quando trepam, você só pensa se o orgasmo dela é falso ou verdadeiro. Ela é realmente uma boa atriz.
O tempo vai passar, você vai envelhecer um pouco, se acostumar com ela e voltar a dormir em paz. E só então ela vai esperar você pegar no sono, virar para o lado, abrir um zíper que vai da cabeça aos pés e sair da sua fantasia de outra. Nesse dia, quem vai dormir ao seu lado serei eu.


Niterói, algum dia entre 8 e 16 de setembro.