ele pensa e não diz
onde tem muita água
tudo é feliz.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Polegar Opositor

Começou com um sms nervoso perguntando se vai dar tudo certo, se eu consegui as caixas. Claro que vai, já tá dando tudo certo. Daí pula pra mulher do SAC do mercado não deixando pegar o carrinho emprestado. O segurança dizendo que, se deixar aí, vão levar essas caixas que você arrumou tão direitinho pra caberem umas dentro das outras, tem que levar tudo de uma vez, até porque seus amigos que moram perto e têm carro não atendem o celular. Tudo bem, me vê uns sacos plásticos; e corta daqui, amarra dali e temos dois pacotes capengas de caixas vazias pra carregar um em cada mão, pena que seus braços são pequenos. Cinco metros pra frente e cataploft. Mais sete e de novo e a mulher fumando na porta se compadece; deixa eu amarrar melhor pra você. Obrigada; mas caiu tudo no primeiro passo. De novo, pisando pequenininho agora. Pausa a cada dez metros. A rua do mercado nunca foi tão longa. Os fones pendurados no pescoço, fodam-se eles, qualquer música que tocar no momento vai ser tipo Beethoven em Laranja Mecânica.
De repente a sensação de que tem algo ali, algo que não costuma aparecer tanto, o que que é? Que porra é essa? E o vento bate e quase carrega os pacotes e chovem uns frutos verdes da árvore e tudo no chão, espalhado. Na primeira tentativa de colocar as caixas no lugar, eureka! O que não costuma aparecer tanto, a sensação de estranhamento se explica: os dedos todos doem. Segurando as caixas de novo eles latejam, se fazem mais vivos do que nunca. Primata. Humano. Encéfalo desenvolvido e polegares opositores. Obrigada, genética, qualquer outra espécie não seria capaz de carregar aquela pilha de caixas, que agora está firme sob dedos orgulhosos da função que cumprem, que é aquilo pra que foram feitos e quase nunca lembramos. Agora sim, o polegar opositor é protagonista e executa sua tarefa de maneir_cataploft.
Merda de vida. Num último esforço, agarrou tudo de qualquer jeito em uma única pilha e correu até a esquina, porque olhar mais uma vez pra trás e ver o supermercado seria traumático. Mais cinco passos corridos e foi a vez dos polegares jogarem tudo no chão, gritando de dor, sentindo a resistência do ar como se fosse um muro invisível (malditos exercícios de física do ensino médio que mandavam sempre ignorar a resistência do ar.). Assusta-se um transeunte que vai a poucos metros à frente. É um tremendo olhador, ao que parece, pois leva quase 11 segundos pra dizer qualquer coisa. É gago. Ahn? Ah, não, obrigada, não precisa. Sério, tudo bem, eu tou carregando isso desde muito longe (mentira, há uns 300 metros, mas ele não precisa saber). Ainda olha por uns instantes, as caixas olham de volta. Vira e vai embora, nunca saberá do poder primata que tem.
É uma reta curta, que termina numa subida também curta, porém arriscada, por motivo de: carros passando. Carros que não poderei ver enquanto carrego o fardo que me tampa a vista do lado direito por completo. Mas vamos. Devagar.
Na terceira e última parada antes de subir, o mendigo dorminhoco ataca novamente. No meio do caminho, atravessado. Curva para a esquerda, então e a ladeira passa sem que se veja nada, nem carros, nem chão, nem frente ou trás, nem pintores do prédio do outro lado da rua, que já pararam de pintar faz tempo e só observam o espetáculo. Finalmente o portão. A mão esquerda nunca mais será a mesma; os dedos tremem tanto que a fechadura entorta, mas dane-se, porque agora o que se vê é o lado de dentro, a escadaria. (Se isso fosse um jogo de tarot, A Escadaria seria O Enforcado.)
Venta mais. Resistência do ar. Resistência das mãos. Do cabelo todo enfiado no olho. Quantas caixas será que tem aqui? Av. Voluntários da Pátria, 314-Porto Alegre, RS e embaixo a sequência de números do CEP CNPJ PEPSICO BRASIL LTDA. Tem uma Voluntários da Pátria em POA.
Uma única parada, causada pelo vento (porque agora os dedos são fortes e não sentem nada além do tremor violento), que derruba metade do conteúdo espalhada pelos degraus.  Sísifo. Camus. Kafka. Seus filhos da puta, duvido vocês terem carregado trezentas caixas da pepsico ltda portalegre quatrocentos e noventa e quatro degraus acima. Sai, sai todo mundo daí que talvez fique mais leve.
No último pique, o topo, o outro portão, a rua de casa. Correndo que nem criança no Natal e que ganhou presente grande. O reflexo no vidro de um carro: cara-de-indigente. O mesmo carro acelera, quase acerta, faz a volta e passa do outro lado, em câmera lenta, ao volante um espécime macho, óculos playsson, buzina, dá tchauzinho, caixas no chão, enfia a buzina no cu. Adeus.
Nos últimos cinquenta metros a promessa de usar mais a mão esquerda na vida e o ódio pela sociedade contra-canhotice, contra ambidestrice. Última parada a cinco ridículos metros do portão de casa. A pilha de caixas balançando contra o paralelepípedo, outro carro em sua direção. Calmamente volto à formação original de duas pilhas, abraço a primeira, o carro para a 30 centímetros e diz que aquela é a sua vaga, se eu posso dar licença, não, não posso, continuo, o portão destrancado, ponho as caixas com esmero no chão, volto pra buscar o resto, a vizinha do carro vesga de incompreensão, desculpe, é que minha mão não me deixa pensar.
Finalmente tudo dentro dos limites de espaço que habito, o 375 da Engenheiro Coelho Cintra em que o carteiro enfia a correspondência e o marcador de gás toca a campainha todo mês, mesmo sem precisar. As caixas agora também moram aqui a partir de agora e os polegares que renasceram e a mão esquerda que nunca mais será a mesma e os frutos verdes que caíram da árvore lá atrás há vários dias, ainda no meio da jornada e um novo sms e vejo a hora e na verdade isso não faz nem dez minutos.