ele pensa e não diz
onde tem muita água
tudo é feliz.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Daltônico



Era uma cidade desbotada. Sim, desbotada. E não existe palavra que descreva melhor um lugar sem cores. Pode-se dizer que a tonalidade mais berrante já vista lá foi o cáqui (que, por acaso, não tem nada de berrante, e se você não sabe o que é cáqui, pergunte ao estilista ou ao militar mais próximo). Nem os sorvetes escaparam; quem fosse à sorveteria, só pedia creme. Creme, creme, creme. Não pediam nem mesmo flocos, pois não era monocromático. E depois de algumas pesquisas, descobriram que os donos das sorveterias não utilizavam mais corantes fortes, alegando que era simplesmente impossível, pois os tais corantes tinham desaparecido do mercado.
Nem o sol, o tão necessário e geralmente tão brilhante sol, escapou. Era cor de ferrugem! Mas uma ferrugem enferrujada por demais. Tanto que doía nos olhos. Tanto que nem esquentava mais. O sol se tornou um mero figurante na cidade; não servia pra nada, só pra fazer os olhos doerem.
Até que numa manhã fria, como todas as outras, aconteceu algo diferente. Aconteceu “alguém”. Alguém que usava calças azuis-turquesa e camisa lilás. Alguém que fazia bolas de chiclete cor-de-rosa maiores que a própria cabeça. Alguém que queria sorvete de pistache. E mais: alguém que não conseguia distinguir tons pastéis, mas que via muitas, mas muitas variações de violeta.
A cidade se reuniu em um conselho para discutir o que fazer com o dito cujo, afinal, isso não podia ficar assim. “Isso é imoral”, diziam uns, “todo esse roxo se espalhando por aí não vai dar em coisa boa!”; porém outros, mais jovens, argumentavam a favor, afinal, “que mal faz um pouquinho de cor?”. Mas a maioria opressora ganhou e o pobre “roxo imoral” foi a julgamento.
Por sorte não foi pra forca, mas sim para a prisão. E lá o fizeram trocar todas as suas cores por um cinza-sujo. O que não deu certo. Ao longo de uma semana as cores voltaram. Começaram pelos cabelos da nuca e pelas unhas dos mindinhos e daí não pararam mais; se espalharam pelos braços, pelo nariz, pelos joelhos, pelo chão, pelas paredes, pelo teto, pelas grades, pelos corredores, pelos portões, pelas ruas, pelas casas, pelos postes, pelos carros, pelos sabores de sorvete(!),pelas bicicletas, pelos cachorros, pelos cabelos, pelos apêndices, pelos corações. Até que chegaram ao sol. Mas o sol não se rendeu tão fácil; afinal foram anos e anos de brilho apagado e de frio constante! Aquilo era uma mudança muito brusca! Mas já está se acostumando e vem assumindo um tom arroxeado muito bonito. Acho que daqui a umas duas semanas vai dar praia.



8 comentários:

Ferreira, Lai disse...

Ninguém sabe o que é agelasto.

Agelasto, adj.: que nunca ri, tristonho. F. gr. Agelastos.

Daniel Gaivota disse...

Bem, agora alguém sabe. Mas já sabia(s).

Daniel Gaivota disse...

Mas gostei do texto. Prosa poética, com todas as contradições que isso e que seu texto implicam.

chayenne f. disse...

agora eu sei o que é agelasto.

Daniel Gaivota disse...

Ha. Mas duvido que assobie.

Ferreira, Lai disse...

Ha!

Eu não consigo assobiar nada mesmo. =p

E nunca soube se é "assobiar" ou "assoviar".
=/~

Daniel Gaivota disse...

Tanto faz. Mas com b ou v, é impossível assobiar enquanto tristonho.

Daniel Gaivota disse...

Foi com b pra parecer com "saber".

Mas estou sendo muito óbvio. Enough.