ele pensa e não diz
onde tem muita água
tudo é feliz.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Vingança

Bateu a porta, mas não trancou. Contava os passos pela calçada, contava os segundos de sinal aberto. Atravessa uma, duas, três e na quarta rua tem uma cega. Não está com pressa, mas não pára pra ajudar, já passou da fase de fazer o bem sem olhar a quem. Lembra dos tempos em que freqüentava o centro espírita e não comia carne nem tomava leite.
Chegou à banca de jornal. Não tem Hollywood. Tudo bem, tem outra banca logo ali. Não, não interessam outras marcas de cigarro. Boa tarde. Continua a comparação com o passado. Não fumava, era saudável. É arrogante a ponto de não se arrepender de nada e a única coisa da qual sente falta é do gosto da comida; porque o que sente hoje é um mero reflexo do que sentia antes, por isso, prefere as mais condimentadas. Está engordando, mas e daí? Nunca ligou pra isso.
Agora atravessava a praça que separa uma banca da outra, Crianças. Sujas, sem dentes. Algumas com suas respectivas mães, outras com suas respectivas balas de hortelã e jujubas à venda. Pára em frente a uma, compra dois pacotes de bala. Da grande. Não por querer ajudar, mas para manter a quantidade (absurda) de açúcar diária.
Vai seguindo. Velhos. Pães. Migalhas. Pombos. Ratos com asas. Pombos são repugnantes. A última coisa que fará ao envelhecer vai ser alimenta-los. Prefere enterrar-se na própria casa e nunca mais sair, para resistir melhor ao que parece ser a maior tentação de quem chega à terceira idade. Esse pensamento faz com que levante o pé direito e o bata no chão com força, fazendo barulho; um ato típico de quem pretende espantar pássaros, tira-los do caminho. Nenhum voou; todos se viraram em sua direção e os que estavam na frente bateram o pé. Sim, vários daqueles pés com três(alguns com dois) dedos bateram no concreto, sincronizados e podia-se jurar que suas expressões mudaram: tornaram-se duras, cruéis mesmo e então voltaram a bicar os farelos como se nada houvesse acontecido.
Depois disso, decidiu, então, de olhos ainda muito arregalados e a boca aberta, contornar a praça. Entrou na lanchonete mais próxima:
_Um café, por favor...Não, não...Vocês têm conhaque?
E decidiu que da próxima vez ajudaria a cega a atravessar. E pegaria mais leve no açúcar. A arrogância ia ter que dar um tempo, porque o medo da vingança do mundo era maior.

Um comentário:

Daniel Gaivota disse...

Eu sinto pena de alguns ótimos textos que ficam sem nenhum comentário..

Puta sacanagem.